segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Minha primeira grande luta

 Há 4 anos conheci a minha primeira (e única) doença: a depressão. No início, muito me questionei sobre a real causa disso. Diferente das doenças com as quais eu estava acostumada a lidar na prática médica, não havia um exame preciso que comprovasse a minha condição. Me restava aceitar resignada que era possível, sim, ter a minha personalidade modificada de repente por razões químicas além do palpável. A partir dali, iniciei, sem acreditar muito, tratamentos (farmacológicos e comportamentais) que me devolveram de volta pro mundo (mundo esse que aprendi a amar de novo). Contudo, faz poucos meses que, na tentativa de me despedir das receitas médicas aos pouquinhos, o fantasma de 4 anos atrás retornou à minha vida. Dessa vez, no entanto, mais velha e mais madura, o recebi sem grandes desesperos ou inquietudes - apenas com a tradicional tristeza e fadiga inerentes ao bicho. Percebi que me perguntar o porquê da coisa era equivalente a perguntar o porquê de um ser humano com hábitos saudáveis descobrir um câncer de repente ou mesmo o porquê do início de uma pneumonia em alguém com plenos pulmões: não há explicação. A busca por uma razão é frustra e nos afunda cada vez mais no mar gelado em que mergulhamos. Quanto mais fundo, mais escura e fria a água se torna e, por isso, não caí nessa armadilha desta vez. Agora, diferente de antes, sou capaz até de escrever sobre isso. Com choro fácil (que não me envergonha mais) e com nenhuma vontade de viver o dia de trabalho eu vos informo: estou aqui falando sobre a depressão. Tornando legível o ilegível. Dando uma forma tipográfica à doença invisível aos exames. Dando voz àquela que se alimenta de silêncio. E como este blog é regado a metáforas, inventei uma para representar a depressão: é como andar em um mar de lama até o peito mas, diferente do que seria natural, não se importar muito se, por acaso, se afundar. Não ter muita força pra sair, afinal, a lama é grossa e é necessário muita energia para chegar até a borda. "Tudo bem se eu ficar aqui. Tudo bem se o destino assim o quiser". Alguém consegue imaginar? 

Eu, tão dona de mim e dona das minhas grandes conquistas; tão bem-humorada e sociável. Eu, logo eu. Calma! Não há razão plausível. Não há nada além da genética e um compilado de nadas. Eu conheço essa luta. Conheço esse jogo e nele já aprendi a jogar. O passar do tempo tem dessas vantagens: não nos tira da frente do perigo, mas nos dá a honra de já conhecer o inimigo. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

As coisas todas de agora

Há uma quadra esportiva de frente para a minha varanda. Todos os dias, por volta das 19h, muitas crianças e adolescentes se reúnem para jogos de vôlei e ali passam horas Animados, gritam, cantam, riem e comemoram pontos no micromundo da Mena Barreto. Eu paro para observar como se movem. Olho os mais tímidos de fora e os mais extrovertidos com pinta de líderes. Como se divertem os meninos na quadra, em plena segunda-feira, sem pensar no que fizeram do ano que passou; sem pensar no horário de acordar amanhã. Apenas a bola importa e a maneira como vivem o agora me encanta.

Lembrei, numa memória cristalina, de quando eu vivia o agora com a intensidade que a inocência dá pra gente. Me transportei para a quadra de vôlei da escola e lembrei como era importante, para mim, ganhar o jogo das olimpíadas escolares, com o rosto pintado com as cores da turma. Lembrei do fatídico dia em que errei o último saque em quadra e liguei assustada para a minha mãe, no trabalho, pra dizer que perderam por causa de mim. Eu vivia tão focada e intensa no que fazia que, às vezes, provava também a dor maior das minhas quedas. Hoje, pensando friamente, o sofrimento real daquela pequena jogadora não acontecia pelo seu mergulho no presente, mas por um apego ao passado (que acabara de nascer). Eu chorava o ponto perdido.

Cresci e, intensa como no dia do saque no vôlei, ainda deposito a maior energia do mundo em tudo que faço. Coração vindo na boca ao escutar o apito surdo do juiz. As pernas tremendo e as mãos frias batendo na bola. Nem sei quanto durou um momento desses pra mim. Tudo intenso. Tudo com ânsia de vômito. Como se em vez da bola eu carregasse o mundo e, passá-la pro outro lado fosse salvar a humanidade da fome e do câncer. Assim era o momento do saque pra mim. Era segurar o mundo com as mãos e salvar a humanidade que vestia roupas de time de escola. 

Mas, uma vez que a bola encontra a rede, tudo o que experimentei vira passado. O coração disparando é passado. O tremor das mãos e a boca seca pela vitória são passado. Não existe mais ponto, bola e nem jogo. A vida piscou e me entregou só o que existe, ignorando minhas lágrimas verdes de tinta. Tive raiva da vida e fui ligar pra minha mãe aos 11 anos de idade. Raiva da progressão do tempo; raiva de ter tido o mundo nas mãos há segundos e o ter atirado contra uma rede velha. Tive raiva de as coisas terem virado passado sem que eu construísse o presente à minha maneira. Do outro lado da rede, comemoravam. As coisas são o que são e sempre há alguém feliz com aquilo que lamentamos.

Hoje, aos 31, ainda acho que meu apego ao que se foi é tamanho. Ainda acho que eu deveria aprender a lavar a tinta do rosto mais rápido; a respirar os ares do presente e a me vestir de Agora como quem troca de roupa nos bastidores de uma peça: nem sempre confiante, mas rápida e certeira. O presente, encenado ou não, é sempre urgente. 

Na quadra da Mena Barreto, os guris viviam o agora. Eu, sem perceber, também.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Mover-se

Andava distraída de mim e atenta às ruas do Jardim Botânico. O início de uma noite quente fazia a cidade fervilhar inteira e explodir em sons, luzes e cheiros. Eu andava rumo à charmosa rua onde tanto desejei morar e que, se eu pudesse, não visitaria assim, tão emotiva, suada e atônita naquele momento específico. Eu suava nas costas, axilas, virilhas e debaixo dos seios, mas seguia a passos largos sem me incomodar com o desconforto do calo do pé. Apenas andava e vivia o calor. Andar e viver o calor era fazer mais por mim do que os últimos 15 dias juntos e somados. Tudo é o que é e o meu destino na noite quente era andar, suar, roçar e sentir o calor. As baratas afoitas na rua também se apressavam em noites quentes. Seguiam funcionando - não sei se suadas - em movimentos determinados, certeiros e rápidos. Tão urbanas e subestimadas, as baratas me mostravam que mover-se era uma regra. Pensei no movimento que o calor traz a despeito de seu muito desconforto. Pensei nas aulas de física da adolescência, onde me contavam que as coisas maciças são todas moléculas em movimento que, quando aquecidas, se enlouquecem ainda mais. Pensei no absurdo que era constatar que uma coisa assim inteira, bonita e potente só é o que é porque se move toda sem ninguém ver. O resultado final está ali a olho nu, mas o trabalho molecular - o movimento quente das moléculas se chocando - este, ninguém vê. O movimento; o ir e vir; ah, como era essencial à vida!

Tudo isso pensei suada ao caminhar pela rua Jardim Botânico. Olhei pros meus pés quase chegando no destino e depois foquei no coração a 112 batidas por minuto, aflito e trabalhador. Sequei o suor do rosto. Senti a brisa quente da cidade em erupção. Me sentia desconfortável por dentro e por fora. Calma - eu mesma disse - o que é hoje pode não ser amanhã. Senti as moleculinhas da alma todas aquecidas; em movimento constante e cíclico no calor do momento, sem se importar se eu estava bem ou não. Apenas seguiam. A vida toda se move sem se importar com nada. O desconforto, coitado, não resiste ao movimento. Calma, TUDO se move.

Segui.

sábado, 26 de agosto de 2023

Sexta

 No início da noite de sexta, saí do prédio da rotina e caminhei até o carro movendo os pés com automatismo. Não lembro de ter acionado a ignição e nem de ter pressionado pedal algum, mas de repente eu já estava no trajeto de sempre, subitamente atenta ao mundo. Pela janela - entreaberta a despeito do medo da violência - entrava o cheiro defumado de churrasco de rua e o som das vozes em grupo dos bares da cidade. Era noite de sexta-feira e eu passava despercebida pelo labirinto boêmio que fervilhava ao meu redor. Ninguém me via e isso me fazia mais viva. Eu ia sentindo os cheiros da sexta-feira por uma brecha de vento que me fazia pensar. O cheiro do álcool e dos cigarros acesos. O cheiro do esgoto urbano imundo. Tudo compunha a sexta-feira e evoluía rápido para uma agitação geral com risos e falas estridentes. A noite de sexta acontecia toda semana, mas trazia consigo um vento de novidade e um querer instigante que levantava alguns corpos cansados, pesados e sedentos por felicidade. A vida na cidade mudava com os dias da semana, de modo que, a depender do calendário, o caos urbano se tornava mais ou menos tolerável. 

Parei em um sinal e um rapaz com cheiro de perfume doce passou por mim vendendo balas. Senti cheiro de açúcar só de olhar pro saquinho de jujubas no retrovisor - uma experiência sinestésica de cheirar as cores em meio a buzinas barulhentas.

O aroma urbano era misto, quente, forte e mandava na noite mais do que a própria noite. Os cheiros da cidade decidiam por todos o rumo e o tempo das coisas. Cada aroma era um vício sem hora pra acabar ou um ônus de se viver na cidade grande. A cerveja, o cigarro, a fritura, o perfume com lança, a fumaça dos carros, o esgoto e o lixo podre do chão. 

Quase chegando em casa, eu ainda refletia sobre odores. Minha sexta-feira cheirava a um medo esquisito do dia seguinte. Eu não estava no agora. Desviei do caos urbano de uma cidade fervilhante e entrei no meu quarto que tinha cheiro de canela. No silêncio absoluto que inventei pra mim, pensei qual seria o cheiro da felicidade. Alguns aromas me vieram à cabeça. O cheiro do jardim do play da infância. Cheiro de perfume Chanel com protetor solar. Cheiro de chuva com café. Cheiro das manhãs da Austrália. Nenhum era a resposta.

 Em meio ao silêncio que eu tanto amava, com o corpo sereno e doído também, concluí que ali a minha felicidade apenas me cheirava bem.


domingo, 30 de julho de 2023

Crença

Estava eu, sudoreica e corajosa, caminhando a passos largos em direção ao que havia de ser feito. Eu, sentindo o peso da responsabilidade nas costas, enrugando a testa sem perceber, andava taquicárdica rumo à comunicação de notícias ruins. Cheguei, chamei aquela mulher para um canto do hospital, enchi os pulmões com a verdade e exalei os fatos de forma lisa, breve e firme. Alguém deveria ser firme. Entendi, desde sempre, que a firmeza era minha obrigação:

- Não tem mais jeito, então? - perguntou ela como quem procurava poças de água nas areias de um deserto.

- Infelizmente não - respondi com a secura do próprio deserto em si, pois mesmo não sendo a responsável pelo clima árido, eu sofria da mesma sede que ela.

Me preparei para o deságue dos rios que não havíamos encontrado até então: as lágrimas torrenciais de quem entendeu a despedida. Contudo, para a minha surpresa, o rosto daquela mulher estava sereno e esboçava uma expressão de luz. Me ajeitei na cadeira, pensando em outras palavras para explicar o óbvio inevitável, mas fui surpreendida pela calmaria de uma resposta-surpresa:

- Acho que quando chega o limite da ciência, é a hora em que a fé prova não ter limites - disse a moça vestida de paz e bastante contente com sua própria conclusão.

Eu e ela, unidas pelos mesmos fatos em um diálogo difícil, éramos separadas por uma coisa apenas: a crença. 

Eu estava pesada, triste, cansada e aflita, enquanto ela, informada das mesmas coisas que eu, escolhia acreditar que tudo (tudinho) era passível de acontecer dali pra frente. Ela, agarrada fortemente ao que escolheu acreditar, havia se tornado maior do que as paredes, portas e chão daquele hospital gelado, onde correntes de vento desafiavam as chamas que muita gente tentava conservar acesas.

Saí pensativa acerca disso - do poder da crença. Olhei pra vida atrás de mim e tentei lembrar de algo que não fosse composto daquilo em que eu fortemente acreditava. Não havia. Varri com o pensamento os 31 anos que me foram dados até então e concluí que o filtro da crença sempre esteve na interface minha com o mundo. Pensei no que mais poderia mover as pernas em direção às coisas se não fosse o ato de crer. Acreditar, por exemplo, que água do mar em um domingo gelado é a única coisa que pode curar o corpo e o cérebro de todos os problemas num mergulho só. Ter a crença num amor tranquilo e livre. Jogar a fé em cima de tanta coisa que só existe porque ela está lá, cobrindo os momentos todinhos com o véu da nossa própria verdade. 

Pensei, por fim, que vivi todos esses dias depositando a minha fé naquilo que julguei valer a pena, tal qual a moça tranquila da enfermaria do hospital. Lembrei que tudo é o que é, sim, justíssimo. Mas a realidade aumentada da crença numa coisa maior e mais bela é, talvez, o que me fez ficar viva em tantos momentos de morte.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

As tardes da infância

Lembro-me, com clareza, das tardes de férias no verão do Nordeste. Um mês inteiro eu passava à toa, junto à minha avó e alguns primos, sem perceber exatamente o quanto, de fato, durava um mês.

Ao entardecer, tenho a recordação de uma sensação olfativa sempre me atiçar. Havia um cheiro de planta molhada nos ventos da tarde, ainda que chuva nenhuma se insinuasse ou que ninguém molhasse o jardim. Um cheiro verde e úmido me acalmava no meio da cidade lenta e do marasmo vespertino. Além dele, do tal cheiro clorofílico, aguado e selvagem, dois outros aromas marcavam as minhas tardes de criança: o cheiro doce e decomposto de fruta madura que morria no chão e o cheiro salgado de mar, mesmo que eu estivesse no interior. Brisas de fruta caída na rua, de caules encharcados e de água do mar eram os elementos que me faziam atinar para o fato de que já entardecia. 

Lá, naqueles dias infantis e puros, eu vivia as tardes enquanto atentava aos cheiros dela. Ou, melhor, vivia as tardes PORQUE atentava aos cheiros dela. O entardecer sempre foi um misto de aromas na minha infância. Tinha o cheiro do cabelo recém lavado, do protetor solar que não saía por completo, de algo no forno assando pra depois e de um café ao longe, em outra casa talvez - tudo isso além da tríade-mãe de todos os aromas do verão. Eu vivia em plenitude o que há de mais verdadeiro nas tardes: um limbo entre uma coisa que nasceu e outra que está para se pôr ainda. Um espaço suave, calmo e tão tenro entre o tilintar das xícaras da manhã e as luzes noturnas da cidade. Entre a avidez por produtividade matinal e o sono do cansaço do final do dia. O entardecer era como um senhor deitado na rede de sua varanda simples, apenas observando os sacrifícios matinais e as lamentações noturnas; balançando quase que imperceptivelmente entre o despertar de homens que ainda não acordaram pra vida e o conformismo de outros tão surpresos com as despedidas.

A tardezinha me abraçava e me fazia refletir sobre a formiga, a brisa, o biscoito e as crianças chutando uma bola. Sobre a própria bola também. Percebi, um dia, que o cheiro da tarde era um completo estado de espírito. Fruta, planta e mar. Seria meu cérebro brincando com os sentidos? Quantas memórias se formaram, moldadas por esses três cheiros. Um tripé de aromas da tarde que não tinham pretensão nenhuma de ser alguma coisa. O cheiro da fruta não queria ser a fruta. O cheiro da planta não queria brotar e nem o cheiro do mar queria ter ondas. 

Os aromas vespertinos eram felizes, eles próprios, pois não eram "de onde vinham" e nem o que estava pra ser. Eles eram os cheiros da tarde. E a tarde era eu inteira, cheirando a vida e percebendo tudo.



segunda-feira, 15 de março de 2021

Sentinela

Alguém me perguntou o porquê de amar a noite mais do que o dia. Foi de noite, então, dirigindo na cidade vazia, que refleti sobre a pergunta que, na hora certa, não consegui responder.

A caminho do trabalho, alerta e ativa, eu notava que o silêncio noturno fazia qualquer ruído bobo virar rei. Era na quietude do escuro quente do Rio, que eu me sentia mais viva e forte, mais instintiva e acesa, como os barulhos urbanos outrora banalizados e abafados pelos excessos do dia. Eu me sentia - como em “Perdoando Deus”, de Clarice - mãe de todas as coisas pequenas que não vemos na claridade ofuscante. Me sentia vivendo uma maternidade jovem, indo ao encontro de filhos que não vieram do meu ventre; prestes a embalar o sono de quem não vive por enquanto, só espera. De quem aguarda a decisão da vida de ficar ou sair; de seguir ou sumir bem diante dos nossos olhos sedentos por uma luz divina na escuridão do momento.  A noite me deixava alerta. Me sentia mãe e sentinela de quem não podia espreitar os movimentos da vida que clandestinamente flutua pelo escuro. Eu era uma jovem que engravidara cedo demais e que, movida por um misto de adrenalina e de amor, sentia no sangue uma vontade de proteger e de cuidar com unhas e dentes. De noite, a fonte de calor que aquece o mundo parecia vir de nós, pois o sol não era mais tão óbvio. Também durante a noite, quietinha e grandiosa, o  barulho desordenado da minha mente não precisava mais gritar para ser ouvido. Só conversava e me fazia companhia na solitude que o silêncio noturno parece trazer.

A caminho do trabalho, eu pensava na noite regendo a guarda dos sentinelas aflitos. Embalando o sono perturbado de quem não dorme, só descansa. De quem se sente o último rastro de consciência no meio do descanso dos outros. Encontro, na noite, sentinelas ansiosos como eu e percebo que, muitas vezes, a minha dor com o sono eterno de alguns é, na verdade, a cópia da dor de uma mãe real. A minha maternidade falsa é só o reduto do meu amor sem direção que, agora, aponta como nunca antes para tudo que tem vida ou que deseja ter.

O porquê de eu amar a noite está no sentimento aflorado de que a surdina noturna é o último momento antes da incerteza do amanhã. A noite é o final de tudo e o começo de nada. É a nossa esperança gritando pelos cantos. É a nossa fé esfarrapada de que se um novo dia vier, ainda estaremos aqui.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A árvore das pipas

Desde que me mudei para a minha atual morada, tenho tido tardes com feixes de luz do sol atravessando a peneira verde da frondosa árvore da minha janela. Essas tardes, tão bucólicas e serenas, são interrompidas, sempre no mesmo horário, pelo barulho e gritaria de meninos na rua. Eu nunca entendi o porquê dos gritos e correrias de chinelo no asfalto; da euforia urbana em tardes silenciosas de isolamento. Um dia, então, me debrucei à janela para espiar o movimento e rapidamente os barulhos infantis foram se decodificando. Os meninos corriam atrás de pipas que caíam de algum lugar do céu nas redondezas de Copanema. Pipas coloridas choviam à tarde na minha rua e muitas delas performavam seu último passo de dança na folhagem robusta da árvore em frente à minha janela. Eu assistia à cena como de um camarote verde, pois a copa da árvore envolvia tudo ao meu redor sem tampar a visão dos meninos que resgatavam as pipas.

Um deles corria rápido com um braço servindo de cabide para uma fileira de pipas feridas, enquanto o outro braço já estava estendido para pegar a próxima antes que tocasse o asfalto áspero. As pipas que choviam do céu talvez pensassem ser aquele o último momento de sua dançante existência na Terra, porém meninos esperançosos - os doutores das pipas - as resgatavam numa tarde sem esperança para elas e para nós. A árvore, por sua vez, amortecia a queda como podia e, com um leve balançar ao som do vento, sacudia os galhos para entregar os pacientes aos cuidados de quem ainda acreditava neles.

Pensei nas minhas sextas-feiras e em quantas pipas caem nos meus braços sem a menor pretensão de viver. Mal respiram, mal entendem o porquê de estarem enganchadas à arvore que tenta, emergencialmente, acolhê-las. São de todas as cores e tamanhos. Algumas ainda voam por si só. Outras nunca mais verão o vento outra vez.

Quero a esperança e a determinação dos meninos da rua. Que correm atrás das pipas que despencam para vê-las voar outra vez; brincar outra vez; dançar outra vez. Viver outra vez.

domingo, 13 de outubro de 2019

Domingos de calor

Saí olhando pros lados, com o coração vibrando o peito, ainda me recompondo do mergulho que demos no mar bruto dos nossos encontros. Senti o cheiro da noite quente, ouvi o barulho da vida que acontecia lá fora, com o vento morno refrescando meu corpo que ardia em suor e perfume. Exalava meu cheiro de mulher; de uma pele remexida que se escondera do sol de um domingo vulcânico e que, agora, ao sair pro mundo comum novamente, se assustava com a noite que nem viu chegar.

Uns gatos se embrenhavam sorrateiros em ruelas enquanto eu passava, camuflando-se nos restos aquecidos do dia. Assim como nós, estavam sempre atentos. Eu tentava me camuflar como os gatos, saindo do seu mundo pelo portão branco e me escondendo das primeiras luzes da noite, sem graça de vê-las acordar enquanto eu perdia a noção do tempo. Mas eu já não podia me esconder de nada. As luzes saíam de dentro de mim e todo mundo notava o brilho nos meus olhos, a batida no peito e o cheiro da pele aquecida a descansar. De qualquer canto da cidade ouvia-se a música que tocava no meu Domingo. Passei por uma igreja e até quis falar com Deus. Mas não sei o que Ele pensa e eu talvez não queira ouvir ninguém por hoje. Eu quero ouvir a música que você fez tocar no meu Domingo. Quero pular no mar bruto que descobrimos, sem pensar no perigo que essas águas podem ter. Por vezes, tenho medo desse mar que encontramos, mas você vem e me arrasta e todo o medo vai embora. Então, como os gatos destemidos da noite que não vimos nascer, dançamos no caos como se não houvesse amanhã. Depois corremos de volta pra vida de antes, fingindo não saber que todos os dias, agora, são Domingos de calor.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Meu barco

Nunca contei a ninguém, mas eu conduzia um barco. Por vezes, precisei consertá-lo sozinha ao longo do ano de 2018. A gente tem que ser meio mecânico, bombeiro, eletricista mesmo. A vida volta e meia quebra no meio e fazemos pequenos ajustes que nem sabíamos ser capazes.

De repente, foi ficando difícil navegar. Eu não aguentava mais resolver os pepinos pra continuar viajando e, com medo de qualquer tempestade destroçar o meu barco mal acabado, passei a abrir mão dos momentos de descanso para estar atenta. Estive atenta, porém, um barco meia-boca não aguenta as brincadeiras de mau gosto do mar.

Um dia, percebi que se eu parasse de aparar as arestas, de fazer reparos e de me preocupar, ninguém notaria, pois eu estava sozinha e o barco era meu. Parei, então, e logo de cara o mar cresceu e virou a embarcação e suas gambiarras água adentro. Era um mar oportunista, que aguardara sorrateiro o meu barco enfraquecer. O mar só respeita os fortes e, vendo que eu não podia mais lutar contra ele, me trouxe pra dentro dele, pensando que era o único lugar do qual eu pudesse fazer parte agora.

Caí num gelado lancinante e, diferente dos outros, não lutei contra. A adrenalina não correu nas minhas veias e deixei que o gelo azul me tirasse a sensibilidade dos pés e das mãos. O que o mar queria de mim? Um coral de carne e osso atapetando as profundezas? Não sirvo, não quero. Os corais possuem vida! Os corais fazem por onde. O mesmo mar que quis me tirar do mundo não tem um lugar pra mim no seu fundo. Eu flutuo, então. Eu escolho pra onde vou. Meu protesto é flutuar. É estar sem estar em lugar nenhum. 



quarta-feira, 20 de março de 2019

Carvalho Gigante

Sentamos. A comida do lugar que escolhemos tinha exatamente o gosto da noite que vivíamos: azedo. Um (lindo) filme de 820 dias era exibido na minha frente toda hora que eu resolvia te olhar no olhos. Eu o queria assistir, mas doía na alma em lugares que eu nunca conhecera antes. Tentei não olhar. Contudo, onde quer que meus olhos procurassem refúgio, havia você ali. Percebi que seria impossível não te ver, pois, na verdade, meu olhar havia sorrateiramente invadido teu corpo e tudo o que conseguia enxergar era a tua essência por todos os lados. Eu não via o bar nem seus clientes falantes. Só via o filme que gravamos em dupla, com os olhos presos lá dentro de você, como se alguém os mantivesse abertos à força, até que eu não aguentasse mais segurar o rio que inundava minhas pálpebras. Deixei o rio me levar, do mesmo jeito que deixei essa corrente me refrescar no nosso primeiro encontro.

Sabe, olho as inúmeras marcas tuas na minha vida e me pergunto qual delas eu gostaria de deixar em você. Uma música dessas que eu tentava tocar? Um cheiro bom dos nossos cafés? Cheiro da minha pele ou do cabelo ao acordar? Sob que forma quero ocupar tua memória? - pensei. Já sei. Quero ser o carvalho gigante, que ninguém viu crescer na lentidão e simplicidade de muda, mas que, de repente, ocupa seu lugar na vida com grandiosidade e beleza. De repente, o carvalho gigante está lá e ninguém sabe como adquiriu tanta força nas raízes para sustentar o seu tamanho.
Quero ser o carvalho gigante e, assim, esbanjar na tua vida a beleza gritante com que você fez eu enxergar a minha.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O menino e a pipa

Retornando à casa em um domingo nublado, com pistas vazias e um silêncio desértico na ilha em que eu, como um pêndulo, ia e voltava todos os dias. As tardes pós-trabalho não me animavam jamais, no entanto, guiavam meus pensamentos pelos mais profundos caminhos de uma mente cansada da superfície.

Em algum quilômetro do caminho, avistei um menino soltando pipa em cima de uma laje, sem ligar para a ameaça de chuva.
Pensei no quanto as pipas já me ensinaram sobre o amor. Veja bem, nunca há controle total do carretel sobre a pipa e, por vezes, se a deixarmos voar bem alto, talvez não volte igualzinha ao que era em nossas mãos. Uma vez, encurtei demais a linha para que eu nunca perdesse a pipa de vista e pudesse observar melhor seus movimentos, porém, ao invés de dançar conforme o vento, a pipa se descoordenou de repente e quebrou com um choque ao chão. Ainda com a linha curta, pude vê-la rasgar à medida em que resistia às rajadas de ar ao invés de deixar o vento guiar, como nas vezes em que voava alto.

As pipas me lembram o amor. Nos dias de céu azulzinho, a linha, se esticada ao máximo, chega a sumir de vista, mas sentimos que está lá, unindo um ponto ao outro com o mínimo de tensão. Quanto mais alto deixamos ir, menos força nos é exigida, pois uma estabilidade celeste controla por nós o incontrolável.

Gosto de pensar nos seus voos em outros céus. Nem sempre é fácil, eu sei. Voar por alguns cantos pode gerar medo. Mas a maior felicidade é te ver voltar pra mim com histórias pra contar, como toda boa pipa que saiu pra voar alto.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Rio de Heráclito

Do catálogo de filmes em cartaz na minha cabeça, tenho agora este aqui que envolve muito dos teus olhos percorrendo o meu rosto, iluminados pela meia luz com que suas luminárias criativas banham a casa. Você é de pouquíssimas palavras, porém de uma linguagem corporal que fala como um contador de histórias a entreter uma plateia interessada como eu.
Neste novo filme, seus olhos exploraram meu rosto tão de perto que eu podia apenas me concentrar no que dizia um de cada vez. E diziam muito. Conversavam comigo curiosos. Por vezes, sorriam discretamente e, em seguida, voltavam a trabalhar garimpando minhas linhas de expressão. A cada vez em que você passeava por outras curvas e voltava a fitar meu rosto bem de perto, parecia que algo novo te atiçava a curiosidade mesmo em território já conhecido. Me senti o próprio rio de Heráclito, no qual não se pode entrar duas vezes. A cada mergulho que você dava, só com os olhos de ressaca, eu me sentia um dos seus livros, do qual você folheava páginas de pele, osso e alma. E toda vez em que voltava a se concentrar no livro, uma brisa com cheiro de nova te fazia cair em uma parte diferente dessa leitura sem fim.

domingo, 1 de julho de 2018

Pontilhismo

Tentei achar, nas últimas semanas, o ponto exato em que nos perdemos e, em vez disso, minha mente me pregou peças mostrando cenas do dia exato em que nos achamos. Verdade é que existe um filme da nossa história na minha cabeça - que só eu tenho o prazer de assistir - e nele estão, em alta definição, as cenas da noite esquisita em que te vi a primeira vez. Enfim, sacudi a cabeça como quem sai de uma hipnose em desenhos animados e tornei a me concentrar no que fazia antes, garimpando o rio que passou em nossas vidas em busca de um divisor de águas. Porém, passadas as horas preguiçosas deste domingo de casa vazia (os melhores papos comigo são em domingos assim), não obtive êxito e percebi que nossa história é como aquelas obras de pontilhismo. Quer dizer, apreciar uma arte dessas focando nos pequenos pontos enfileirados e tentar desvencilhá-los uns dos outros é perder completamente a harmonia do todo. Apesar de você ser um marco claro em minha vida, a harmonia e a beleza dessa história só tem sentido se respeitarmos o limite de distância imposto a quem aprecia as obras de um museu. Às vezes, por teimosia, volto a focar em um ponto colorido específico do todo e, rindo, me desaprovo, obviamente.

Nossa história pontilhista, como toda boa arte, permite mil interpretações distintas. É observador-dependente, assim como o é tudo aquilo que envolve amor. Mas não importa muito. Mesmo passando por todas as nuances de sentido que passam as obras-primas aos olhos do mundo, nossa história também carrega a vantagem artística de poder ser para sempre apreciada.



domingo, 20 de maio de 2018

Pingamentos

Tive um Domingo de ressaca. Doses de pensamentos queimaram minha garganta dia após dia durante a semana. Tão fortes quanto álcool purinho, pensamentos desceram meu esôfago sem pena. Pingamentos. Arderam o estômago, depois anestesiaram o cérebro e eu, bêbada, segui a semana virando doses das reflexões que degustei por aí. Como uma adolescente desregrada, eu quis mais. "Mais uma, por favor!", eu dizia à vida. E ela atendia, queimando meus neurônios com a aguardente mais alcoolica que encontrou no mercado: os diálogos comigo mesma.

Um dia, segui com minha marcha ebriosa para o lugar preferido dos trêbados na madrugada: minha cama. Foi aí que a vida, como uma amiga sem limites naquelas festas de jovens sem lei, me agarrou pela boca e enfiou goela abaixo mais uns goles de água de fogo. Por essa, não pedi. Eu queria parar de me afundar na própria mente, mas a vida achou que eu precisasse me machucar. Levei um tombo da própria altura e machuquei bem na altura do peito.

Estou de ressaca. Não tão lindos quanto os de Capitu, meus olhos estão vermelhos e inchados. Todos os músculos doem do trem-bala que me atingiu. Morrendo de sede, vou hidratando a alma, reagindo aos poucos a este brinde final.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Café e pão de queijo

O início da noite já invadia a minha tarde curta, enquanto a brisa do Jardim Botânico se decidia por fria ou quente. Nunca havia amenidade nas brisas da minha vida, de modo que os ventos sempre me eriçavam os pelos de frio ou me suavam a pele a arder de calor. Bem, eu andava assim mesmo, acostumada com a intensidade de sensações que os dias geralmente me traziam. Com a boca amarga de café e pão de queijo - combinação gostosa que me agrada o coração - eu andava a passos lentos ouvindo os estalos do meu próprio caminhar. Ora, sons e cheiros me trazem tenras memórias e o barulho do meu salto batendo ao chão me chamava a atenção para a mulher que venho me tornando. O barulho, contudo, ressoava nos ouvidos como ecos de responsabilidades mil que agora me enchiam a rotina e pesavam um pouco nos ombros.

Toc, toc, toc. Era o som do meu presente de tanto pensar e batalhar um futuro.

Mudei o foco. O cheiro de dama-da-noite ao virar a esquina da minha rua me lembrou o dia em que me mudei para lá. Em seguida, fui retrocedendo, de repente, até chegar misteriosamente no cheiro do bolo assando no forno nas tardes de chuva das Laranjeiras depois da escola. Até chegar no som de uma só rodinha na bicicleta do play. E, por fim, cheguei no cheiro do lençol da casa de vó dos Janeiros ardentes na Paraíba, até perceber que alguém segurava, já impaciente, a porta do elevador para que eu entrasse. Uma nova sucessão de tocs - agora taquitocs - me enfiou correndo porta adentro e, de repente, casa.

A cabeça, aérea como nunca, insistia em retomar os cheiros e sons mais aconchegantes que a vida já me dera o prazer de experimentar. Talvez fosse o corpo pedindo uma trégua do mar de novidades em que eu nadava agora. Jogando a boia do aconchego antes que eu me afogue no desconhecido. Trazendo sons familiares para abafar os barulhos da mente e cheiro das flores de sempre pra não me perder nos jardins do presente.

sábado, 14 de abril de 2018

O dia em que quase briguei com Deus


Saí da praia às pressas aquele dia. Mal tinha pisado na areia e já era a fatídica hora de voltar, arrumar a mala e partir para te ver uma última vez. O sol daquele Janeiro no Nordeste torrava a cabeça dos preocupados e abençoava os despreocupados jogados no mar (tudo é relativo). Ah, essa volta. Enchi os olhos de lágrimas, vestida de férias, mas com a cabeça batendo panelas pelas ruas escaldantes de João Pessoa.

- O senhor poderia ir mais rápido, por favor? – perguntei ao taxista.

- Posso sim, senhora – respondeu meio sem graça ao ver meu rosto vermelho no retrovisor.

Cheguei, corri pro banho e me arrumei. Vestindo uma regata florida, ouvi reclamações de que a roupa não era pro clima. Uma regata florida. Você AMAVA flores! Tenho certeza de que elogiaria a estampa e faria, na semana seguinte, uma roupa ainda melhor, afinal, sua criatividade nunca encontrou um limite.

No carro, rumo à mesma Recife fúnebre que encontrei dias atrás, engatei a pensar, novamente, naquilo que pensava aqui no Rio, jogada na cama, imóvel de cansaço: por que você? As coisas nunca possuíram lógica desde o dia em que a doença chegou na sua (na nossa) vida. Eu queria brigar com Deus por nos fazer experimentar a vida envoltos em mistério, guiados apenas pela fé que precisamos cuidar para manter acesa. Por nos dar o gosto de viver, mas com a tarefa de crer. Eu queria brigar com Deus porque você era boa demais pra ir embora e nós precisávamos muito mais de você do que Ele. Senti raiva. Onde estava Deus, afinal? Por que nos momentos mais difíceis eu sempre achava que Ele não passava de uma imaginação humana? Uma criação desesperada?

Parei. A cabeça quase explodiu naquelas estradas vazias até que lembrei de um detalhe: você NUNCA questionou. Eu disse: você sabia do seu fim próximo e nunca, nem uma vez sequer, deixou de amar a vida exatamente do jeito que ela acontecia. Com dor. Com limitações. Com tratamentos. E com alegria. Você nunca pareceu sequer suspeitar de que nosso Deus havia te deixado um pouco de lado para tratar de alguém que, porventura, precisasse mais. Você apenas sorria e permanecia com seu humor que, cada vez mais, me soava paradoxal. Todo o seu dia, desde o despertar até o boa noite, era envolto por uma aura esquisita de felicidade plena e – pasmem - de paz.

Foi aí que entendi. Todas as vezes em que você dizia que estava tudo bem, eu me dei conta de quem é que estava falando comigo. Percebi o recado que estava sendo passado. Percebi que não era mesmo para me preocupar. Que quando você falava, Deus preparava nossos corações atordoados para ficar em paz do jeitinho que você estava. Me senti, então, naquelas tardes de Domingo, monótonas, em que saímos pela casa, tresloucados, procurando por horas o celular que está no próprio bolso, até acharmos e cairmos no riso. Ou os óculos que estão quietos no rosto. Ou a caneta agarrada bem ali na mão direita. Não era óbvio? Sorri.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Geometria

O lado ruim de viajar é que a cabeça e o coração se expandem tanto que passam a esbarrar nas paredes dos corredores estreitos da rotina.

Às vezes, gostaria de voltar à infância por 1 dia e brincar novamente com aquelas peças geométricas que se encaixavam em buracos com seus respectivos formatos. A cada perfeito encaixe encontrado, alguém comemorava ao fundo, aplaudindo com sorrisos o pequeno-grande feito.

Hoje, esbarrando vértices pontiagudos nas pequenas ruelas da mesmice, não sei que peça sou. Nem que lugar contém o meu formato, pr'eu deitar e comemorar a beleza que é viver.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

"Rema, que tá vindo"

Houve uma época em que eu resolvi aprender a surfar. Apesar de amante dos esportes, eu não levava jeito pra coisa e isso fazia a minha experiência com o surf ser bem diferente de outros alunos. A maior dificuldade e o grande foco do meu surf não era ficar em pé na prancha até o final da onda nem fazer alguma gracinha no trajeto, mas conseguir retornar para o local de origem quando a onda acabava. Por mais bobo que isso possa parecer, terminar a onda e voltar lá pra onde estavam todos era uma experiência tenebrosa e, não à toa, eu me lembro até hoje.

Quase sempre, na hora de voltar, a famosa "série" aparecia. Para quem não sabe, isso é uma sucessão de ondas, um tanto maiores do que as usuais para o dia, que vem uma atrás da outra, com um mínimo intervalo de tempo entre elas. Nesse conturbado retorno, acontecia de algumas ondas da série quebrarem antes de eu conseguir ultrapassá-las, o que trazia até mim uma violenta e espessa espuma, arrancando a prancha do meu corpo antes que eu pudesse mergulhá-la e evitar o susto. Mas não termina por aí. Uma vez que eu conseguia voltar para o resto do grupo e sentar novamente para descansar, com os ouvidos e a garganta repletos de água salgada, o professor (o mesmo cara que havia me ajudado a entrar na onda, mas pouco podia fazer pelo meu retorno até ele), de repente, falava o que eu odiava ouvir: "rema, que tá vindo". E saía remando em direção ao horizonte. Sim, mais uma dessas séries começava a se formar e o que você tem que fazer para não ser levado pelas ondas é remar contra elas como se não houvesse amanhã. Nesse momento, o maior desafio para mim estava lançado. Rapidamente eu deitava, posicionando o peitoral no ponto da prancha onde haviam me ensinado, já tremendo os braços, com o coração a mil. E aí, com o sangue inundado de adrenalina, ofegante e com os olhinhos arregalados, eu começava a remar rumo ao paredão de água que subia na minha frente. À medida que subia, a água da onda ia formando uma sombra sobre si mesma, tornando aquele cenário ainda mais assustador. Todos se separavam, remando cada um à sua maneira e velocidade, sendo o barulho dos meus braços puxando a água com força o único ruído que eu podia ouvir. De repente, quando parecia que não ia dar tempo de alcançar a crista da onda antes que ela me alcançasse primeiro, eu já estava lá no topo, vendo-a escorregar por debaixo da prancha. Esse momento era o mais gostoso pra mim. Enquanto todos se recompunham sentando novamente, como se nada tivesse acontecido, eu dava o suspiro mais aliviante do dia, sentindo a prancha descer a colina de água que eu havia deixado para trás. Orgulhosa de mim, com o troféu que só eu conhecia, eu amava a descida gostosa que vinha logo depois do sufoco, recebendo os respingos da crista da onda que o vento trazia pra refrescar os que não desistiram.

Você deve estar se perguntando por que eu ainda insistia em frequentar aulas de surf diante do estresse que aquilo me causava. É porque nas aulas de surf, ali dentro d'água, a única resposta que podíamos dar ao medo era remar rumo à origem dele e ultrapassá-lo antes que ele crescesse demais.
Curiosamente, no pico do sufoco, ali no auge do cansaço, com os braços já fracos de dor e sem a alternativa de parar, era também o momento no qual eu estava mais no alto e já podia abrir um sorriso cansado comemorando o que, pros outros, era normal.

Eu abandonei as aulas de surf por falta de tempo. Mas gosto de dizer que nunca parei de surfar. Volta e meia, numas semanas difíceis dessas, nas quais cada dia é uma onda da série, eu tento parar um pouquinho para me posicionar na prancha, lembrando com saudade do desenho que faziam na areia lá nos meus 14 anos (e eu fingia não entender só pra ficar mais tempo sem precisar entrar na água). Depois, só há uma direção para que eu reme sem poder voltar atrás. E então, as horas de maior desespero e suor se tornam, também, as de maior crescimento. 



sexta-feira, 26 de maio de 2017

Muro

Um dia, há muito tempo, fui injustiçada. É, bem direto assim mesmo. Escolhi mal as companhias, desperdicei oportunidades de sair fora e, por fim, fui injustiçada. O que se sucedeu a isso foi o nascimento, em mim, de um pequeno monstrinho, a princípio inocente: o sentimento de vingança. 

A partir daí, eu passei a imaginar situações hipotéticas por meio das quais a tal justiça poderia ser feita. Quer dizer, dar o troco era um objetivo claro e único, capaz de produzir as coisas mais malucas que a imaginação possa criar. Eu pensava, por horas e horas (sem notar) em como seria bom se, de repente, houvesse a oportunidade de estar no lugar certo, de frente pra pessoa certa e pôr um fim naquela pendência de uma vez. Cheguei, por vezes, a pensar em quem poderia estar comigo nesse dia, mas depois desisti e voltei a me querer sozinha. O sentimento de vingança é uma espécie de droga alucinógena que, por meio do pensamento (ou de ações nos casos de dependência grave), faz a gente acreditar que as hipóteses ali criadas são boas e aliviantes, não sendo possível identificar seu potencial destruidor nem observar a cadeia sem fim que integram, já que nunca é suficiente apenas uma ideia isolada.

De repente, comecei a notar que grande parte do meu tempo estava sendo doado para o sentimento de vingança e, por nunca realmente concretizar nenhum dos pensamentos de dentro de mim, eu passei a não conseguir mais administrá-los sozinha. Acho até que concretizar qualquer coisa maluca que eu chamava de "fazer justiça" iria, na verdade, evoluir o monstrinho-pokemon da minha cabeça e, talvez, nunca mais me deixar em paz - mas isso é outra história. Não conseguindo, assim, guardar só pra mim, resolvi revelar os efeitos da minha droga-vingança para uma amiga. Contei tudo o que tinha acontecido e o que meus dias haviam se tornado depois disso, mas tentando convencê-la de que a única coisa a ser feita em prol da paz interior era ir lá e devolver na mesma moeda.

Sabe, o sentimento de vingança corrompe o puro e nobre sentimento de justiça. A vingança pinta a justiça de preto e faz essa coisa tão grandiosa e necessária adquirir um ar sombrio que nunca lhe pertenceu. A vingança faz com a justiça a mesma coisa que o dinheiro faz com o ser humano: modifica e contorce até a essência sumir todinha, mas preserva o nome para que muitos não notem o estrago.

A conversa com minha amiga seguiu sem que eu ganhasse argumentação alguma:

- É como um muro - eu disse - que me impede de seguir. O muro é justamente a injustiça ali me olhando e, para transpassá-la de vez, preciso quebrá-la. Se eu usar as mãos é claro que eu posso quebrar alguns ossos, talvez o pé ao tentar chutar o muro, talvez o braço também mas, por fim, vencerei isso, passarei pro outro lado. Afinal, você espera que eu desista? Que dê meia volta e fique aceitando uma derrota? Quem que é injustiçado e simplesmente desiste de enfrentar a situação? - dizia eu, ardorosa, batendo no peito naquele cantinho anatômico onde a gente guarda o orgulho.

- A única forma de enfrentar não é quebrando o muro e, segundo você, dando o troco. O oposto de quebrar o muro não é desistir dele, mas pular por cima.

- E deixá-lo inteiro?!

- Não, pra trás.