segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O menino e a pipa

Retornando à casa em um domingo nublado, com pistas vazias e um silêncio desértico na ilha em que eu, como um pêndulo, ia e voltava todos os dias. As tardes pós-trabalho não me animavam jamais, no entanto, guiavam meus pensamentos pelos mais profundos caminhos de uma mente cansada da superfície.

Em algum quilômetro do caminho, avistei um menino soltando pipa em cima de uma laje, sem ligar para a ameaça de chuva.
Pensei no quanto as pipas já me ensinaram sobre o amor. Veja bem, nunca há controle total do carretel sobre a pipa e, por vezes, se a deixarmos voar bem alto, talvez não volte igualzinha ao que era em nossas mãos. Uma vez, encurtei demais a linha para que eu nunca perdesse a pipa de vista e pudesse observar melhor seus movimentos, porém, ao invés de dançar conforme o vento, a pipa se descoordenou de repente e quebrou com um choque ao chão. Ainda com a linha curta, pude vê-la rasgar à medida em que resistia às rajadas de ar ao invés de deixar o vento guiar, como nas vezes em que voava alto.

As pipas me lembram o amor. Nos dias de céu azulzinho, a linha, se esticada ao máximo, chega a sumir de vista, mas sentimos que está lá, unindo um ponto ao outro com o mínimo de tensão. Quanto mais alto deixamos ir, menos força nos é exigida, pois uma estabilidade celeste controla por nós o incontrolável.

Gosto de pensar nos seus voos em outros céus. Nem sempre é fácil, eu sei. Voar por alguns cantos pode gerar medo. Mas a maior felicidade é te ver voltar pra mim com histórias pra contar, como toda boa pipa que saiu pra voar alto.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Rio de Heráclito

Do catálogo de filmes em cartaz na minha cabeça, tenho agora este aqui que envolve muito dos teus olhos percorrendo o meu rosto, iluminados pela meia luz com que suas luminárias criativas banham a casa. Você é de pouquíssimas palavras, porém de uma linguagem corporal que fala como um contador de histórias a entreter uma plateia interessada como eu.
Neste novo filme, seus olhos exploraram meu rosto tão de perto que eu podia apenas me concentrar no que dizia um de cada vez. E diziam muito. Conversavam comigo curiosos. Por vezes, sorriam discretamente e, em seguida, voltavam a trabalhar garimpando minhas linhas de expressão. A cada vez em que você passeava por outras curvas e voltava a fitar meu rosto bem de perto, parecia que algo novo te atiçava a curiosidade mesmo em território já conhecido. Me senti o próprio rio de Heráclito, no qual não se pode entrar duas vezes. A cada mergulho que você dava, só com os olhos de ressaca, eu me sentia um dos seus livros, do qual você folheava páginas de pele, osso e alma. E toda vez em que voltava a se concentrar no livro, uma brisa com cheiro de nova te fazia cair em uma parte diferente dessa leitura sem fim.

domingo, 1 de julho de 2018

Pontilhismo

Tentei achar, nas últimas semanas, o ponto exato em que nos perdemos e, em vez disso, minha mente me pregou peças mostrando cenas do dia exato em que nos achamos. Verdade é que existe um filme da nossa história na minha cabeça - que só eu tenho o prazer de assistir - e nele estão, em alta definição, as cenas da noite esquisita em que te vi a primeira vez. Enfim, sacudi a cabeça como quem sai de uma hipnose em desenhos animados e tornei a me concentrar no que fazia antes, garimpando o rio que passou em nossas vidas em busca de um divisor de águas. Porém, passadas as horas preguiçosas deste domingo de casa vazia (os melhores papos comigo são em domingos assim), não obtive êxito e percebi que nossa história é como aquelas obras de pontilhismo. Quer dizer, apreciar uma arte dessas focando nos pequenos pontos enfileirados e tentar desvencilhá-los uns dos outros é perder completamente a harmonia do todo. Apesar de você ser um marco claro em minha vida, a harmonia e a beleza dessa história só tem sentido se respeitarmos o limite de distância imposto a quem aprecia as obras de um museu. Às vezes, por teimosia, volto a focar em um ponto colorido específico do todo e, rindo, me desaprovo, obviamente.

Nossa história pontilhista, como toda boa arte, permite mil interpretações distintas. É observador-dependente, assim como o é tudo aquilo que envolve amor. Mas não importa muito. Mesmo passando por todas as nuances de sentido que passam as obras-primas aos olhos do mundo, nossa história também carrega a vantagem artística de poder ser para sempre apreciada.



domingo, 20 de maio de 2018

Pingamentos

Tive um Domingo de ressaca. Doses de pensamentos queimaram minha garganta dia após dia durante a semana. Tão fortes quanto álcool purinho, pensamentos desceram meu esôfago sem pena. Pingamentos. Arderam o estômago, depois anestesiaram o cérebro e eu, bêbada, segui a semana virando doses das reflexões que degustei por aí. Como uma adolescente desregrada, eu quis mais. "Mais uma, por favor!", eu dizia à vida. E ela atendia, queimando meus neurônios com a aguardente mais alcoolica que encontrou no mercado: os diálogos comigo mesma.

Um dia, segui com minha marcha ebriosa para o lugar preferido dos trêbados na madrugada: minha cama. Foi aí que a vida, como uma amiga sem limites naquelas festas de jovens sem lei, me agarrou pela boca e enfiou goela abaixo mais uns goles de água de fogo. Por essa, não pedi. Eu queria parar de me afundar na própria mente, mas a vida achou que eu precisasse me machucar. Levei um tombo da própria altura e machuquei bem na altura do peito.

Estou de ressaca. Não tão lindos quanto os de Capitu, meus olhos estão vermelhos e inchados. Todos os músculos doem do trem-bala que me atingiu. Morrendo de sede, vou hidratando a alma, reagindo aos poucos a este brinde final.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Café e pão de queijo

O início da noite já invadia a minha tarde curta, enquanto a brisa do Jardim Botânico se decidia por fria ou quente. Nunca havia amenidade nas brisas da minha vida, de modo que os ventos sempre me eriçavam os pelos de frio ou me suavam a pele a arder de calor. Bem, eu andava assim mesmo, acostumada com a intensidade de sensações que os dias geralmente me traziam. Com a boca amarga de café e pão de queijo - combinação gostosa que me agrada o coração - eu andava a passos lentos ouvindo os estalos do meu próprio caminhar. Ora, sons e cheiros me trazem tenras memórias e o barulho do meu salto batendo ao chão me chamava a atenção para a mulher que venho me tornando. O barulho, contudo, ressoava nos ouvidos como ecos de responsabilidades mil que agora me enchiam a rotina e pesavam um pouco nos ombros.

Toc, toc, toc. Era o som do meu presente de tanto pensar e batalhar um futuro.

Mudei o foco. O cheiro de dama-da-noite ao virar a esquina da minha rua me lembrou o dia em que me mudei para lá. Em seguida, fui retrocedendo, de repente, até chegar misteriosamente no cheiro do bolo assando no forno nas tardes de chuva das Laranjeiras depois da escola. Até chegar no som de uma só rodinha na bicicleta do play. E, por fim, cheguei no cheiro do lençol da casa de vó dos Janeiros ardentes na Paraíba, até perceber que alguém segurava, já impaciente, a porta do elevador para que eu entrasse. Uma nova sucessão de tocs - agora taquitocs - me enfiou correndo porta adentro e, de repente, casa.

A cabeça, aérea como nunca, insistia em retomar os cheiros e sons mais aconchegantes que a vida já me dera o prazer de experimentar. Talvez fosse o corpo pedindo uma trégua do mar de novidades em que eu nadava agora. Jogando a boia do aconchego antes que eu me afogue no desconhecido. Trazendo sons familiares para abafar os barulhos da mente e cheiro das flores de sempre pra não me perder nos jardins do presente.

sábado, 14 de abril de 2018

O dia em que quase briguei com Deus


Saí da praia às pressas aquele dia. Mal tinha pisado na areia e já era a fatídica hora de voltar, arrumar a mala e partir para te ver uma última vez. O sol daquele Janeiro no Nordeste torrava a cabeça dos preocupados e abençoava os despreocupados jogados no mar (tudo é relativo). Ah, essa volta. Enchi os olhos de lágrimas, vestida de férias, mas com a cabeça batendo panelas pelas ruas escaldantes de João Pessoa.

- O senhor poderia ir mais rápido, por favor? – perguntei ao taxista.

- Posso sim, senhora – respondeu meio sem graça ao ver meu rosto vermelho no retrovisor.

Cheguei, corri pro banho e me arrumei. Vestindo uma regata florida, ouvi reclamações de que a roupa não era pro clima. Uma regata florida. Você AMAVA flores! Tenho certeza de que elogiaria a estampa e faria, na semana seguinte, uma roupa ainda melhor, afinal, sua criatividade nunca encontrou um limite.

No carro, rumo à mesma Recife fúnebre que encontrei dias atrás, engatei a pensar, novamente, naquilo que pensava aqui no Rio, jogada na cama, imóvel de cansaço: por que você? As coisas nunca possuíram lógica desde o dia em que a doença chegou na sua (na nossa) vida. Eu queria brigar com Deus por nos fazer experimentar a vida envoltos em mistério, guiados apenas pela fé que precisamos cuidar para manter acesa. Por nos dar o gosto de viver, mas com a tarefa de crer. Eu queria brigar com Deus porque você era boa demais pra ir embora e nós precisávamos muito mais de você do que Ele. Senti raiva. Onde estava Deus, afinal? Por que nos momentos mais difíceis eu sempre achava que Ele não passava de uma imaginação humana? Uma criação desesperada?

Parei. A cabeça quase explodiu naquelas estradas vazias até que lembrei de um detalhe: você NUNCA questionou. Eu disse: você sabia do seu fim próximo e nunca, nem uma vez sequer, deixou de amar a vida exatamente do jeito que ela acontecia. Com dor. Com limitações. Com tratamentos. E com alegria. Você nunca pareceu sequer suspeitar de que nosso Deus havia te deixado um pouco de lado para tratar de alguém que, porventura, precisasse mais. Você apenas sorria e permanecia com seu humor que, cada vez mais, me soava paradoxal. Todo o seu dia, desde o despertar até o boa noite, era envolto por uma aura esquisita de felicidade plena e – pasmem - de paz.

Foi aí que entendi. Todas as vezes em que você dizia que estava tudo bem, eu me dei conta de quem é que estava falando comigo. Percebi o recado que estava sendo passado. Percebi que não era mesmo para me preocupar. Que quando você falava, Deus preparava nossos corações atordoados para ficar em paz do jeitinho que você estava. Me senti, então, naquelas tardes de Domingo, monótonas, em que saímos pela casa, tresloucados, procurando por horas o celular que está no próprio bolso, até acharmos e cairmos no riso. Ou os óculos que estão quietos no rosto. Ou a caneta agarrada bem ali na mão direita. Não era óbvio? Sorri.