domingo, 13 de outubro de 2019

Domingos de calor

Saí olhando pros lados, com o coração vibrando o peito, ainda me recompondo do mergulho que demos no mar bruto dos nossos encontros. Senti o cheiro da noite quente, ouvi o barulho da vida que acontecia lá fora, com o vento morno refrescando meu corpo que ardia em suor e perfume. Exalava meu cheiro de mulher; de uma pele remexida que se escondera do sol de um domingo vulcânico e que, agora, ao sair pro mundo comum novamente, se assustava com a noite que nem viu chegar.

Uns gatos se embrenhavam sorrateiros em ruelas enquanto eu passava, camuflando-se nos restos aquecidos do dia. Assim como nós, estavam sempre atentos. Eu tentava me camuflar como os gatos, saindo do seu mundo pelo portão branco e me escondendo das primeiras luzes da noite, sem graça de vê-las acordar enquanto eu perdia a noção do tempo. Mas eu já não podia me esconder de nada. As luzes saíam de dentro de mim e todo mundo notava o brilho nos meus olhos, a batida no peito e o cheiro da pele aquecida a descansar. De qualquer canto da cidade ouvia-se a música que tocava no meu Domingo. Passei por uma igreja e até quis falar com Deus. Mas não sei o que Ele pensa e eu talvez não queira ouvir ninguém por hoje. Eu quero ouvir a música que você fez tocar no meu Domingo. Quero pular no mar bruto que descobrimos, sem pensar no perigo que essas águas podem ter. Por vezes, tenho medo desse mar que encontramos, mas você vem e me arrasta e todo o medo vai embora. Então, como os gatos destemidos da noite que não vimos nascer, dançamos no caos como se não houvesse amanhã. Depois corremos de volta pra vida de antes, fingindo não saber que todos os dias, agora, são Domingos de calor.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Meu barco

Nunca contei a ninguém, mas eu conduzia um barco. Por vezes, precisei consertá-lo sozinha ao longo do ano de 2018. A gente tem que ser meio mecânico, bombeiro, eletricista mesmo. A vida volta e meia quebra no meio e fazemos pequenos ajustes que nem sabíamos ser capazes.

De repente, foi ficando difícil navegar. Eu não aguentava mais resolver os pepinos pra continuar viajando e, com medo de qualquer tempestade destroçar o meu barco mal acabado, passei a abrir mão dos momentos de descanso para estar atenta. Estive atenta, porém, um barco meia-boca não aguenta as brincadeiras de mau gosto do mar.

Um dia, percebi que se eu parasse de aparar as arestas, de fazer reparos e de me preocupar, ninguém notaria, pois eu estava sozinha e o barco era meu. Parei, então, e logo de cara o mar cresceu e virou a embarcação e suas gambiarras água adentro. Era um mar oportunista, que aguardara sorrateiro o meu barco enfraquecer. O mar só respeita os fortes e, vendo que eu não podia mais lutar contra ele, me trouxe pra dentro dele, pensando que era o único lugar do qual eu pudesse fazer parte agora.

Caí num gelado lancinante e, diferente dos outros, não lutei contra. A adrenalina não correu nas minhas veias e deixei que o gelo azul me tirasse a sensibilidade dos pés e das mãos. O que o mar queria de mim? Um coral de carne e osso atapetando as profundezas? Não sirvo, não quero. Os corais possuem vida! Os corais fazem por onde. O mesmo mar que quis me tirar do mundo não tem um lugar pra mim no seu fundo. Eu flutuo, então. Eu escolho pra onde vou. Meu protesto é flutuar. É estar sem estar em lugar nenhum. 



quarta-feira, 20 de março de 2019

Carvalho Gigante

Sentamos. A comida do lugar que escolhemos tinha exatamente o gosto da noite que vivíamos: azedo. Um (lindo) filme de 820 dias era exibido na minha frente toda hora que eu resolvia te olhar no olhos. Eu o queria assistir, mas doía na alma em lugares que eu nunca conhecera antes. Tentei não olhar. Contudo, onde quer que meus olhos procurassem refúgio, havia você ali. Percebi que seria impossível não te ver, pois, na verdade, meu olhar havia sorrateiramente invadido teu corpo e tudo o que conseguia enxergar era a tua essência por todos os lados. Eu não via o bar nem seus clientes falantes. Só via o filme que gravamos em dupla, com os olhos presos lá dentro de você, como se alguém os mantivesse abertos à força, até que eu não aguentasse mais segurar o rio que inundava minhas pálpebras. Deixei o rio me levar, do mesmo jeito que deixei essa corrente me refrescar no nosso primeiro encontro.

Sabe, olho as inúmeras marcas tuas na minha vida e me pergunto qual delas eu gostaria de deixar em você. Uma música dessas que eu tentava tocar? Um cheiro bom dos nossos cafés? Cheiro da minha pele ou do cabelo ao acordar? Sob que forma quero ocupar tua memória? - pensei. Já sei. Quero ser o carvalho gigante, que ninguém viu crescer na lentidão e simplicidade de muda, mas que, de repente, ocupa seu lugar na vida com grandiosidade e beleza. De repente, o carvalho gigante está lá e ninguém sabe como adquiriu tanta força nas raízes para sustentar o seu tamanho.
Quero ser o carvalho gigante e, assim, esbanjar na tua vida a beleza gritante com que você fez eu enxergar a minha.