segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Geometria

O lado ruim de viajar é que a cabeça e o coração se expandem tanto que passam a esbarrar nas paredes dos corredores estreitos da rotina.

Às vezes, gostaria de voltar à infância por 1 dia e brincar novamente com aquelas peças geométricas que se encaixavam em buracos com seus respectivos formatos. A cada perfeito encaixe encontrado, alguém comemorava ao fundo, aplaudindo com sorrisos o pequeno-grande feito.

Hoje, esbarrando vértices pontiagudos nas pequenas ruelas da mesmice, não sei que peça sou. Nem que lugar contém o meu formato, pr'eu deitar e comemorar a beleza que é viver.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

"Rema, que tá vindo"

Houve uma época em que eu resolvi aprender a surfar. Apesar de amante dos esportes, eu não levava jeito pra coisa e isso fazia a minha experiência com o surf ser bem diferente de outros alunos. A maior dificuldade e o grande foco do meu surf não era ficar em pé na prancha até o final da onda nem fazer alguma gracinha no trajeto, mas conseguir retornar para o local de origem quando a onda acabava. Por mais bobo que isso possa parecer, terminar a onda e voltar lá pra onde estavam todos era uma experiência tenebrosa e, não à toa, eu me lembro até hoje.

Quase sempre, na hora de voltar, a famosa "série" aparecia. Para quem não sabe, isso é uma sucessão de ondas, um tanto maiores do que as usuais para o dia, que vem uma atrás da outra, com um mínimo intervalo de tempo entre elas. Nesse conturbado retorno, acontecia de algumas ondas da série quebrarem antes de eu conseguir ultrapassá-las, o que trazia até mim uma violenta e espessa espuma, arrancando a prancha do meu corpo antes que eu pudesse mergulhá-la e evitar o susto. Mas não termina por aí. Uma vez que eu conseguia voltar para o resto do grupo e sentar novamente para descansar, com os ouvidos e a garganta repletos de água salgada, o professor (o mesmo cara que havia me ajudado a entrar na onda, mas pouco podia fazer pelo meu retorno até ele), de repente, falava o que eu odiava ouvir: "rema, que tá vindo". E saía remando em direção ao horizonte. Sim, mais uma dessas séries começava a se formar e o que você tem que fazer para não ser levado pelas ondas é remar contra elas como se não houvesse amanhã. Nesse momento, o maior desafio para mim estava lançado. Rapidamente eu deitava, posicionando o peitoral no ponto da prancha onde haviam me ensinado, já tremendo os braços, com o coração a mil. E aí, com o sangue inundado de adrenalina, ofegante e com os olhinhos arregalados, eu começava a remar rumo ao paredão de água que subia na minha frente. À medida que subia, a água da onda ia formando uma sombra sobre si mesma, tornando aquele cenário ainda mais assustador. Todos se separavam, remando cada um à sua maneira e velocidade, sendo o barulho dos meus braços puxando a água com força o único ruído que eu podia ouvir. De repente, quando parecia que não ia dar tempo de alcançar a crista da onda antes que ela me alcançasse primeiro, eu já estava lá no topo, vendo-a escorregar por debaixo da prancha. Esse momento era o mais gostoso pra mim. Enquanto todos se recompunham sentando novamente, como se nada tivesse acontecido, eu dava o suspiro mais aliviante do dia, sentindo a prancha descer a colina de água que eu havia deixado para trás. Orgulhosa de mim, com o troféu que só eu conhecia, eu amava a descida gostosa que vinha logo depois do sufoco, recebendo os respingos da crista da onda que o vento trazia pra refrescar os que não desistiram.

Você deve estar se perguntando por que eu ainda insistia em frequentar aulas de surf diante do estresse que aquilo me causava. É porque nas aulas de surf, ali dentro d'água, a única resposta que podíamos dar ao medo era remar rumo à origem dele e ultrapassá-lo antes que ele crescesse demais.
Curiosamente, no pico do sufoco, ali no auge do cansaço, com os braços já fracos de dor e sem a alternativa de parar, era também o momento no qual eu estava mais no alto e já podia abrir um sorriso cansado comemorando o que, pros outros, era normal.

Eu abandonei as aulas de surf por falta de tempo. Mas gosto de dizer que nunca parei de surfar. Volta e meia, numas semanas difíceis dessas, nas quais cada dia é uma onda da série, eu tento parar um pouquinho para me posicionar na prancha, lembrando com saudade do desenho que faziam na areia lá nos meus 14 anos (e eu fingia não entender só pra ficar mais tempo sem precisar entrar na água). Depois, só há uma direção para que eu reme sem poder voltar atrás. E então, as horas de maior desespero e suor se tornam, também, as de maior crescimento. 



sexta-feira, 26 de maio de 2017

Muro

Um dia, há muito tempo, fui injustiçada. É, bem direto assim mesmo. Escolhi mal as companhias, desperdicei oportunidades de sair fora e, por fim, fui injustiçada. O que se sucedeu a isso foi o nascimento, em mim, de um pequeno monstrinho, a princípio inocente: o sentimento de vingança. 

A partir daí, eu passei a imaginar situações hipotéticas por meio das quais a tal justiça poderia ser feita. Quer dizer, dar o troco era um objetivo claro e único, capaz de produzir as coisas mais malucas que a imaginação possa criar. Eu pensava, por horas e horas (sem notar) em como seria bom se, de repente, houvesse a oportunidade de estar no lugar certo, de frente pra pessoa certa e pôr um fim naquela pendência de uma vez. Cheguei, por vezes, a pensar em quem poderia estar comigo nesse dia, mas depois desisti e voltei a me querer sozinha. O sentimento de vingança é uma espécie de droga alucinógena que, por meio do pensamento (ou de ações nos casos de dependência grave), faz a gente acreditar que as hipóteses ali criadas são boas e aliviantes, não sendo possível identificar seu potencial destruidor nem observar a cadeia sem fim que integram, já que nunca é suficiente apenas uma ideia isolada.

De repente, comecei a notar que grande parte do meu tempo estava sendo doado para o sentimento de vingança e, por nunca realmente concretizar nenhum dos pensamentos de dentro de mim, eu passei a não conseguir mais administrá-los sozinha. Acho até que concretizar qualquer coisa maluca que eu chamava de "fazer justiça" iria, na verdade, evoluir o monstrinho-pokemon da minha cabeça e, talvez, nunca mais me deixar em paz - mas isso é outra história. Não conseguindo, assim, guardar só pra mim, resolvi revelar os efeitos da minha droga-vingança para uma amiga. Contei tudo o que tinha acontecido e o que meus dias haviam se tornado depois disso, mas tentando convencê-la de que a única coisa a ser feita em prol da paz interior era ir lá e devolver na mesma moeda.

Sabe, o sentimento de vingança corrompe o puro e nobre sentimento de justiça. A vingança pinta a justiça de preto e faz essa coisa tão grandiosa e necessária adquirir um ar sombrio que nunca lhe pertenceu. A vingança faz com a justiça a mesma coisa que o dinheiro faz com o ser humano: modifica e contorce até a essência sumir todinha, mas preserva o nome para que muitos não notem o estrago.

A conversa com minha amiga seguiu sem que eu ganhasse argumentação alguma:

- É como um muro - eu disse - que me impede de seguir. O muro é justamente a injustiça ali me olhando e, para transpassá-la de vez, preciso quebrá-la. Se eu usar as mãos é claro que eu posso quebrar alguns ossos, talvez o pé ao tentar chutar o muro, talvez o braço também mas, por fim, vencerei isso, passarei pro outro lado. Afinal, você espera que eu desista? Que dê meia volta e fique aceitando uma derrota? Quem que é injustiçado e simplesmente desiste de enfrentar a situação? - dizia eu, ardorosa, batendo no peito naquele cantinho anatômico onde a gente guarda o orgulho.

- A única forma de enfrentar não é quebrando o muro e, segundo você, dando o troco. O oposto de quebrar o muro não é desistir dele, mas pular por cima.

- E deixá-lo inteiro?!

- Não, pra trás.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Meu carnaval

Lembro que ano passado, bem nessa época do ano, eu retornava ao Brasil depois de viver o ano mais marcante da minha vida. O carnaval, vocês sabem, talvez seja a melhor época para retornos difíceis como esse. Quero dizer que, na ocasião daquele retorno, eu precisava de uma felicidade externa gritando por aí pra me fazer acordar e viver o dia de forma quase natural. Se dependesse apenas de mim, as coisas meio cinzas que eu carregava aqui dentro não seriam suficientes para me fazer levantar. Sendo assim, eu fui lembrando pouco a pouco, no meio daquele monte de gente feliz, que sorrir em qualquer parte do mundo é necessário. Por mais que estivesse decidida a manter minha cara fechada, alguma fantasia engraçada me contraía o canto da boca e a purpurina na cara até que ficava legal. O carnaval de 2016 me carregou nos braços e me deu além de boas vindas, uma injeção de ânimo.

Este ano, entretanto, escolhi sair do núcleo da folia pra uma breve injeção de ar puro, grama e cheiro de chuva com terra. Fui notando que olhar pra você acordando numa barraca apertada acelerava o coração e simulava as baquetas golpeando os surdos nas ruas. Era festa em mim como há muito eu não presenciava. Não tinha fila pro xixi nem ninguém pisando no pé, mas alguns contratempos fizeram parte do meu feriado do jeitinho que manda o figurino de qualquer carnaval. Falamos com desconhecidos, gastamos mais do que o planejado, bebemos pouca água e vimos o tempo sair voando como é clássico desses dias de festa. Eu queria multiplicar as horas do jeitinho que desejam todos os amantes da melhor época do ano.

Eu que outrora precisei desse feriado como fuga de um momento ruim, hoje utilizava esses dias como reprodução perfeita do meu Agora. Não te vi de fantasia durante o meu carnaval, mas qualquer figurino perderia o sentido pro quão real você é. 

Desta vez, quando chegou a quarta de cinzas, sorri quietinha ao acordar e perceber que meu carnaval tem purpurina pra durar daqui pra frente.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Domingos

Nunca gostei dos cheiros que o Domingo exala. Quer dizer, as coisas todas tem um cheiro: o mar, o suor, o livro, o café, o sexo, o medo e, é claro, os Domingos.

O primeiro cheiro desse final ou início de semana era do almoço ultrapassando as frestas da porta e cobrindo meu corpo ainda adormecido. Em vez de despertar com o cheiro de café invadindo as narinas, eu acordava cheirando a óleo de mim mesma e churrasco da varanda do vizinho. Domingo seguia, então, preguiçando pelas horas assustadoramente rápidas que, assim como eu, detestavam demorar demais nesse dia. Ao sair na rua, havia o cheiro do perfume das famílias passeando rumo ao Jardim Botânico. Cheiro dos cachorros correndo na praça, do cigarro do flanelinha correndo atrás de um carro, do frango rodando no boteco da esquina. Domingo tinha cheiro de peixe de feira, de fumaça de moto e de asfalto evaporando daquelas poças invisíveis que o calor faz a gente enxergar. No fim da tarde, vinha o cheiro que mais desgosto: o das tarefas inacabadas. Ah, Domingo era quase uma força do além puxando meu corpo fraco rumo a um poço de improdutividade.

Rapidamente, Domingo ganhava o cheiro da noite chegando e, consequentemente, das luzes acesas no quarto abafado. Havia o cheiro das roupas empilhadas na cama por fazer, de moedas espalhadas na escrivaninha e de café seco em xícaras vazias.

De repente, o cheiro de Segunda invadia a sala, abafando todos os cheiros que Domingo carregava. Domingo ia embora silencioso, sem se despedir. Nunca se despedia, como se, no fundo, soubesse que algum cheiro estranho surgia toda vez que entrava em cena.