quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Leito 05

Noventa e três anos. Eu olhava para você notando as linhas que cada um dos noventa e três anos havia deixado no seu rosto magro. Noventa e três anos. Se eu juntasse três vidas minhas, não conseguiria chegar a uma sua. Te ver naquele leito, dormindo encurvada, invadida por tantos acessos e com os pulmões enchendo por máquina me fazia pensar. Será que teve a chance de se apaixonar? Será que viajou para algum lugar sonhado? Quantas vezes comeu a comida favorita? Mergulhou no mar, abraçou alguém, assistiu a um filme que tocou o coração? 
Eu olhava para você tentando imaginar a vida que o seu sangue pulsando carregava. Tentando imaginar a história por trás do corpo consumido sobre aquele leito de CTI em uma tarde de segunda.
Quantas vezes você teve a chance de ver o pôr-do-sol? Quantas vezes cantou alto a sua música preferida?

Chamei o médico.

- O que houve? - perguntou.

- Está desconfortável ao respirador - respondi.

Ele checou. Não estava. Me olhou sorrindo com um olhar fraterno que alguns têm ao olhar para projetos de médicos inseguros, como eu. Checou, também, a sedação e analgesia. Tudo ok. Saiu.

Não havia nada errado. Eu é que estava desconfortável. A faculdade de medicina não havia me ensinado. Digo, aprendi o mecanismo do respirador, os modos de ventilação, os fármacos para sedação e analgesia, as escalas de avaliação mas, de fato, não me ensinaram a lidar com o desconforto de se estar de frente para a vulnerabilidade humana.

"Não queria estar no seu lugar" - pensei. Mas logo a cabeça fez lembrar que um dia sou eu. Queria que, quando for a hora, alguém olhasse pra mim (pode ser um estudante confuso ou alguém sem jaleco mesmo) e chegasse à conclusão de que uma vida bem vivida (ou não) merece sim uma morte bem morrida. Merece ir embora sem que nenhuma memória gostosa escape sem querer pelo tubo do respirador. Sem que nenhuma dor no leito de um CTI seja maior do que as dores de saudade que a vida causa na gente. Ou do que as dores de amor, que rasgam tudo por dentro mas que fazem a gente se sentir vivo como nunca.

Eu espero te ver semana que vem. Mas, se não der, espero que Deus esteja lá sentado pra me contar que você estava em paz.