quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Cheiro da partida

A gente sabe que veio só de passagem mas quando olha pra trás vê que construiu uma vida inteira. Dá tempo de escolher uma comida preferida e de achar um lugar pra ser nosso esconderijo. Dá tempo de formar uma família e de firmar laços mais fortes do que a gente achou que fosse fazer nesse tempo. Dá tempo de arrumar problema e se sentir orgulhoso após resolver sozinho. Tempo o bastante pra viajar e, ao retornar, sentir a sensação de estar pisando em casa de novo. Dá tempo de mudar de casa, de aprender como gastar o dinheiro, de se perder e se achar de novo. Há tempo o bastante para se familiarizar com rostos, sons e cheiros. Som de pássaro, de trem e dos passos no piso de madeira da casa. Cheiro de café, da rua e do lar. E quando os cheiros se tornam comuns e familiares, você sabe que ganhou um novo lar. O cheiro da casa e da grama quando chove. O cheiro de algo queimando numa noite quente. Do churrasco num dia de sol. O cheiro do vento gelado nos longos dias de inverno. Da vela aromatizada que um dia você comprou pra mim e eu acendo todo início de noite. Dá pra sentir e reconhecer o cheiro dos temperos fortes que viraram rotina. Dá pra lembrar do cheiro do perfume de quem está sempre por perto.
 
Mas, de repente, veio um cheiro novo. É o cheiro da despedida. Você tenta camuflar, sobrepondo os outros cheiros que são bons e acolhedores, mas não funciona. Dia após dia o cheiro da despedida domina a sala e a cozinha. Entra no meu quarto e me dá dor de cabeça. Passo fins de semana fora e percebo que o cheiro da partida se dissipou num piscar de olhos por todos os lugares onde eu piso. Percorreu distâncias enormes e eu não consigo entender como a fonte é tão potente. É tão forte que arde e escorre umas lágrimas nos olhos, como o cheiro da cebola cortada contra o qual a gente tenta sempre lutar mas não funciona. O cheiro da despedida também invade os nossos encontros, mas eu tenho medo de perguntar se você também está sentindo.
 
Olho por todo lado e descubro que a fonte sou eu. Em meio ao perfume das flores da primavera, há sempre esse incômodo e eu não consigo mais fingir que não é real.