segunda-feira, 15 de março de 2021

Sentinela

Alguém me perguntou o porquê de amar a noite mais do que o dia. Foi de noite, então, dirigindo na cidade vazia, que refleti sobre a pergunta que, na hora certa, não consegui responder.

A caminho do trabalho, alerta e ativa, eu notava que o silêncio noturno fazia qualquer ruído bobo virar rei. Era na quietude do escuro quente do Rio, que eu me sentia mais viva e forte, mais instintiva e acesa, como os barulhos urbanos outrora banalizados e abafados pelos excessos do dia. Eu me sentia - como em “Perdoando Deus”, de Clarice - mãe de todas as coisas pequenas que não vemos na claridade ofuscante. Me sentia vivendo uma maternidade jovem, indo ao encontro de filhos que não vieram do meu ventre; prestes a embalar o sono de quem não vive por enquanto, só espera. De quem aguarda a decisão da vida de ficar ou sair; de seguir ou sumir bem diante dos nossos olhos sedentos por uma luz divina na escuridão do momento.  A noite me deixava alerta. Me sentia mãe e sentinela de quem não podia espreitar os movimentos da vida que clandestinamente flutua pelo escuro. Eu era uma jovem que engravidara cedo demais e que, movida por um misto de adrenalina e de amor, sentia no sangue uma vontade de proteger e de cuidar com unhas e dentes. De noite, a fonte de calor que aquece o mundo parecia vir de nós, pois o sol não era mais tão óbvio. Também durante a noite, quietinha e grandiosa, o  barulho desordenado da minha mente não precisava mais gritar para ser ouvido. Só conversava e me fazia companhia na solitude que o silêncio noturno parece trazer.

A caminho do trabalho, eu pensava na noite regendo a guarda dos sentinelas aflitos. Embalando o sono perturbado de quem não dorme, só descansa. De quem se sente o último rastro de consciência no meio do descanso dos outros. Encontro, na noite, sentinelas ansiosos como eu e percebo que, muitas vezes, a minha dor com o sono eterno de alguns é, na verdade, a cópia da dor de uma mãe real. A minha maternidade falsa é só o reduto do meu amor sem direção que, agora, aponta como nunca antes para tudo que tem vida ou que deseja ter.

O porquê de eu amar a noite está no sentimento aflorado de que a surdina noturna é o último momento antes da incerteza do amanhã. A noite é o final de tudo e o começo de nada. É a nossa esperança gritando pelos cantos. É a nossa fé esfarrapada de que se um novo dia vier, ainda estaremos aqui.