sábado, 26 de agosto de 2023

Sexta

 No início da noite de sexta, saí do prédio da rotina e caminhei até o carro movendo os pés com automatismo. Não lembro de ter acionado a ignição e nem de ter pressionado pedal algum, mas de repente eu já estava no trajeto de sempre, subitamente atenta ao mundo. Pela janela - entreaberta a despeito do medo da violência - entrava o cheiro defumado de churrasco de rua e o som das vozes em grupo dos bares da cidade. Era noite de sexta-feira e eu passava despercebida pelo labirinto boêmio que fervilhava ao meu redor. Ninguém me via e isso me fazia mais viva. Eu ia sentindo os cheiros da sexta-feira por uma brecha de vento que me fazia pensar. O cheiro do álcool e dos cigarros acesos. O cheiro do esgoto urbano imundo. Tudo compunha a sexta-feira e evoluía rápido para uma agitação geral com risos e falas estridentes. A noite de sexta acontecia toda semana, mas trazia consigo um vento de novidade e um querer instigante que levantava alguns corpos cansados, pesados e sedentos por felicidade. A vida na cidade mudava com os dias da semana, de modo que, a depender do calendário, o caos urbano se tornava mais ou menos tolerável. 

Parei em um sinal e um rapaz com cheiro de perfume doce passou por mim vendendo balas. Senti cheiro de açúcar só de olhar pro saquinho de jujubas no retrovisor - uma experiência sinestésica de cheirar as cores em meio a buzinas barulhentas.

O aroma urbano era misto, quente, forte e mandava na noite mais do que a própria noite. Os cheiros da cidade decidiam por todos o rumo e o tempo das coisas. Cada aroma era um vício sem hora pra acabar ou um ônus de se viver na cidade grande. A cerveja, o cigarro, a fritura, o perfume com lança, a fumaça dos carros, o esgoto e o lixo podre do chão. 

Quase chegando em casa, eu ainda refletia sobre odores. Minha sexta-feira cheirava a um medo esquisito do dia seguinte. Eu não estava no agora. Desviei do caos urbano de uma cidade fervilhante e entrei no meu quarto que tinha cheiro de canela. No silêncio absoluto que inventei pra mim, pensei qual seria o cheiro da felicidade. Alguns aromas me vieram à cabeça. O cheiro do jardim do play da infância. Cheiro de perfume Chanel com protetor solar. Cheiro de chuva com café. Cheiro das manhãs da Austrália. Nenhum era a resposta.

 Em meio ao silêncio que eu tanto amava, com o corpo sereno e doído também, concluí que ali a minha felicidade apenas me cheirava bem.


3 comentários:

  1. Irretocável. Tão gostoso o mergulho nesse conto. Deixou o sabor de quero mais..

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  2. Lindo te ler e te sentir através desse relato sensível, profundo e transcendental. Sempre que penso em você, penso na alegria de viver, saiba que você ativa esse cheiro de felicidade, está em ti. Um beijo no coração, Luiza 🥰

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