terça-feira, 26 de maio de 2020

A árvore das pipas

Desde que me mudei para a minha atual morada, tenho tido tardes com feixes de luz do sol atravessando a peneira verde da frondosa árvore da minha janela. Essas tardes, tão bucólicas e serenas, são interrompidas, sempre no mesmo horário, pelo barulho e gritaria de meninos na rua. Eu nunca entendi o porquê dos gritos e correrias de chinelo no asfalto; da euforia urbana em tardes silenciosas de isolamento. Um dia, então, me debrucei à janela para espiar o movimento e rapidamente os barulhos infantis foram se decodificando. Os meninos corriam atrás de pipas que caíam de algum lugar do céu nas redondezas de Copanema. Pipas coloridas choviam à tarde na minha rua e muitas delas performavam seu último passo de dança na folhagem robusta da árvore em frente à minha janela. Eu assistia à cena como de um camarote verde, pois a copa da árvore envolvia tudo ao meu redor sem tampar a visão dos meninos que resgatavam as pipas.

Um deles corria rápido com um braço servindo de cabide para uma fileira de pipas feridas, enquanto o outro braço já estava estendido para pegar a próxima antes que tocasse o asfalto áspero. As pipas que choviam do céu talvez pensassem ser aquele o último momento de sua dançante existência na Terra, porém meninos esperançosos - os doutores das pipas - as resgatavam numa tarde sem esperança para elas e para nós. A árvore, por sua vez, amortecia a queda como podia e, com um leve balançar ao som do vento, sacudia os galhos para entregar os pacientes aos cuidados de quem ainda acreditava neles.

Pensei nas minhas sextas-feiras e em quantas pipas caem nos meus braços sem a menor pretensão de viver. Mal respiram, mal entendem o porquê de estarem enganchadas à arvore que tenta, emergencialmente, acolhê-las. São de todas as cores e tamanhos. Algumas ainda voam por si só. Outras nunca mais verão o vento outra vez.

Quero a esperança e a determinação dos meninos da rua. Que correm atrás das pipas que despencam para vê-las voar outra vez; brincar outra vez; dançar outra vez. Viver outra vez.

8 comentários:

  1. Que texto belo e emocionante! Você realmente possui uma sensibilidade ímpar, minha filha! Parabéns!!!

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  2. legal Lu! adorei! mais ainda sua volta a escrever aqui no seu blog! bjo.

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  3. Que texto bonito! E quanta sensibilidade em enxergar tamanha beleza numa brincadeira de criança.

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  4. Nem sei como parei aqui... Mas que bela surpresa!

    Li e fiquei com "O Caçador de Pipas" na cabeça. Ótimas metáforas...

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    1. Ótima lembrança :) Obrigada pela sua visita ao blog, ainda que não planejada haha. Volte sempre!

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