terça-feira, 2 de agosto de 2016

Encontro marcado

Cheguei já de noite, como de costume. Entrei no quarto, sentei na cama, olhei em volta. Um livro inacabado, uma apostila, um caderno e umas canetas (sempre) me rodeavam. Abri a apostila. Questão 1. Questão 2. Questão 3. Fechei. Levantei, encostei a porta, apaguei as luzes e deitei.



Deitada encolhidinha, coloquei um despertador para dali a 25 minutos. Calada, fechei os olhos que, na verdade, caíram como duas portinhas de chumbo e ali ficaram. Barulho de talher na cozinha, de botão do microondas, de portão de garagem apitando ao longe e uma sirene de ambulância mais longe ainda. O coração batia no ouvido, como naquelas vezes em que a gente deita a cabeça numa posição estranha e ouve o sangue pulsando todinho. Era bom. O som de mim mesma foi lentamente vencendo os ruídos externos, mas ainda deixava a respiração participar da sinfonia que se formava aqui dentro. O estômago embrulhado murmurava baixinho uns sinais de maus tratos e eu sentia as mãos aquecendo enterradas no corpo, enquanto os pés gelavam dos sapatos recém tirados. Sentia o jeito como os pelos arrepiavam no friozinho da noite no Jardim Botânico. O jeito como os dentes encaixavam com a boca fechada. O jeito como o cabelo bagunçado vendava os olhos e me protegia dos postes de luz da cidade sempre viva. Era bom estar ali, reconhecendo cada canto de mim mesma. Era bom sentir que eu tinha o controle da matéria deitada sobre a cama; que corpo e alma ainda se abraçavam e, em vez de um ser cárcere do outro, eram bons e velhos amigos que às vezes se desencontravam nos labirintos de rotinas doidas. Era bom demais estar ali. Os pensamentos das obrigações, que há alguns minutos aceleravam o coração ansioso, deram lugar a lembranças de suco de mangaba na Paraíba e brincadeiras no play das Laranjeiras, me fazendo lembrar direitinho quem é que estava ali deitada. 
Não, eu não era um corpo moribundo à deriva no mar da rotina. Eu era TÃO mais que isso e tudo o que precisava era de mais desses encontros marcados comigo mesma.

Senti alguém se juntar a mim e participar da sintonia corpo e alma que eu vivenciava ali sozinha. Mas quem poderia invadir algo tão íntimo assim? Eu não sentia outro corpo, mas jurava que alguém estava de conchinha ouvindo comigo meu sangue pulsar no travesseiro. 
Era Deus, concluí. Perguntei por onde andou nesse dia tão comum e Ele sorriu sem dizer nada. Pediu que eu nunca deixasse a vida lá de fora tocar o ritmo da vida aqui de dentro. Que toda vez que corpo e alma brigassem, que eu parasse um pouquinho para que fizessem as pazes de novo. Me disse que um cérebro superestimulado não escuta com clareza os anseios de um espírito negligenciado.
Refleti em silêncio.

O despertador tocou. Levantei vagarosa, esticando os músculos do corpo (menos) cansado. Sentei na beira da cama e disse baixinho:

- A partir de hoje, todas as noites, temos um encontro marcado. Eu, minh'alma e você.

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