domingo, 28 de agosto de 2016

Só ir

Tenho a mania de querer dizer tudo. Qualquer coisa que angustie ou que me deixe feliz, lá vou eu falar sobre. É bom ser transparente. Tanta coisa boa já me ocorreu por causa disso. É bom abrir o peito e a boca pra tirar de dentro uns pensamentos tóxicos e dizer as coisas das quais discordo, principalmente. Mas ser assim tão nua já me fez perder grandes oportunidades de permanecer calada.

O silêncio é o carinho que a alma precisa às vezes. Muita palavra dita no calor de uma resposta pode parecer um detox instantâneo, mas tantas e tantas vezes volta maior e com mais dor pra um canto qualquer escondido no corpo. E aí vai te causando o mal estar tardio que você jurou ter evitado. Aquela náusea chatinha de uma coisa que na hora parecia a pílula da renovação. Que nem ressaca de droga, que vai corroendo o corpo depois de horas infinitas de uma sensação gostosa.

Teste sair de fininho. Vá deixando pra trás o que não pede o seu gasto de energia em longas e intermináveis conversas, mas simplesmente um desapego quieto, calado, discreto e final. Como naquelas festas das quais você quer ir embora, mas falar com todo mundo e explicar que já está indo é tão mais desgastante do que simplesmente ir. Só abrir a porta e ir.

Tenho a estranha mania de, ao avistar a porta, dar meia volta pra dizer sei lá o que pra uma multidão que não ia nem notar o meu sutil movimento. Discorro sobre ir embora da vida de quem eu não sei nem se chegou a notar minha chegada. É curioso esse gasto de energia em um simples abrir de porta. Preciso parar. Esqueço, bobamente, que sempre pude andar até a porta. Que ela sempre esteve lá, à vista. E a chave sempre esteve aqui no bolso. É só ir.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Encontro marcado

Cheguei já de noite, como de costume. Entrei no quarto, sentei na cama, olhei em volta. Um livro inacabado, uma apostila, um caderno e umas canetas (sempre) me rodeavam. Abri a apostila. Questão 1. Questão 2. Questão 3. Fechei. Levantei, encostei a porta, apaguei as luzes e deitei.



Deitada encolhidinha, coloquei um despertador para dali a 25 minutos. Calada, fechei os olhos que, na verdade, caíram como duas portinhas de chumbo e ali ficaram. Barulho de talher na cozinha, de botão do microondas, de portão de garagem apitando ao longe e uma sirene de ambulância mais longe ainda. O coração batia no ouvido, como naquelas vezes em que a gente deita a cabeça numa posição estranha e ouve o sangue pulsando todinho. Era bom. O som de mim mesma foi lentamente vencendo os ruídos externos, mas ainda deixava a respiração participar da sinfonia que se formava aqui dentro. O estômago embrulhado murmurava baixinho uns sinais de maus tratos e eu sentia as mãos aquecendo enterradas no corpo, enquanto os pés gelavam dos sapatos recém tirados. Sentia o jeito como os pelos arrepiavam no friozinho da noite no Jardim Botânico. O jeito como os dentes encaixavam com a boca fechada. O jeito como o cabelo bagunçado vendava os olhos e me protegia dos postes de luz da cidade sempre viva. Era bom estar ali, reconhecendo cada canto de mim mesma. Era bom sentir que eu tinha o controle da matéria deitada sobre a cama; que corpo e alma ainda se abraçavam e, em vez de um ser cárcere do outro, eram bons e velhos amigos que às vezes se desencontravam nos labirintos de rotinas doidas. Era bom demais estar ali. Os pensamentos das obrigações, que há alguns minutos aceleravam o coração ansioso, deram lugar a lembranças de suco de mangaba na Paraíba e brincadeiras no play das Laranjeiras, me fazendo lembrar direitinho quem é que estava ali deitada. 
Não, eu não era um corpo moribundo à deriva no mar da rotina. Eu era TÃO mais que isso e tudo o que precisava era de mais desses encontros marcados comigo mesma.

Senti alguém se juntar a mim e participar da sintonia corpo e alma que eu vivenciava ali sozinha. Mas quem poderia invadir algo tão íntimo assim? Eu não sentia outro corpo, mas jurava que alguém estava de conchinha ouvindo comigo meu sangue pulsar no travesseiro. 
Era Deus, concluí. Perguntei por onde andou nesse dia tão comum e Ele sorriu sem dizer nada. Pediu que eu nunca deixasse a vida lá de fora tocar o ritmo da vida aqui de dentro. Que toda vez que corpo e alma brigassem, que eu parasse um pouquinho para que fizessem as pazes de novo. Me disse que um cérebro superestimulado não escuta com clareza os anseios de um espírito negligenciado.
Refleti em silêncio.

O despertador tocou. Levantei vagarosa, esticando os músculos do corpo (menos) cansado. Sentei na beira da cama e disse baixinho:

- A partir de hoje, todas as noites, temos um encontro marcado. Eu, minh'alma e você.