terça-feira, 21 de junho de 2016

Respira

Cheguei em casa ainda com a imagem dos reflexos das gotas de chuva no seu rosto. Joguei o corpo na cama, a bolsa num canto e dei o suspiro profundo que não tinha dado o dia inteiro. A voz interior, que sempre me acompanha ao final de dias difíceis, já vinha dando o ar da graça pra dizer alguma coisa. Estava com medo de brigar comigo e quis pedir a ela que me desse um desconto só hoje. Mas não, é preciso conversar (se você acha estranho eu ter uma voz na consciência, talvez precise de silêncio de espírito). 

- Está cansada, hein? Olha esses olhos fundos de quem pede uma noite de sono pro dia acabar logo. - disse a voz toda imponente.

- Não preciso do seu julgamento. Preciso ficar quieta agora, sem pensar coisa nenhuma. - respondi.

- Olha, eu vi tudo. Me lembrou quando você era criança. 

- Como assim?

- Sabe, quando criança, às vezes você chegava na cozinha, numa dessas tardes de tempo ruim que nem hoje, e encontrava um grande bolo de massa paradinho no balcão. Enquanto que pra outros aquilo era o meio de uma receita deliciosa, pra você era tipo um brinquedo novo. Queria mexer, tirar pedaço, fazer bolinha e brincar de massinha. - disse a consciência em tom de riso.

- Affe, apenas explique o que isso tem a ver com meu dia caótico. Pra quem estava do meu lado, parece que você quer mais me irritar do que ajudar a enxergar as coisas.

- Calma, moça. Vamos lá. O problema é que ninguém deixava você tocar na massa apoiada ali, sob o estranho argumento de que "a massa estava descansando". Você fitava aquele potencial playground e não entendia o porquê de uma coisa daquelas precisar "descansar". Só sei que demorava pra aceitar, viu? Tentavam te explicar que se você mexesse, se apertasse e tocasse ia estragar a receita e o resultado não ia ser tão bom. Alguma coisa maior estava por trás daquilo e tudo o que pediam a você, ansiosa, era que tivesse calma e não mexesse antes da hora. Por mais que o desejo fosse grande, por mais que a vontade pinicasse nos dedos, aquela era a hora de manter distância e não interferir, pra no fim dar certo. Entendeu?

- Mais ou menos. - disse eu.

- Ora, a noite de hoje me fez lembrar de você catucando coisas que pediam distância. Achando que seu toque e sua interferência iam ser bons, mas depois se arrependeu e lembrou que ter calma, pro ser humano, é tão importante quanto comer.

Eu fechei os olhos, como quem sente vergonha. Pedi pra voz me dar um tempo e disse:

- Você está fazendo sentido agora.

- Não é? - respondeu ela - Quanto mais você falava, mais se embolava. Quanto mais você se deixava levar pela ideia doida de surgir do nada, mais consequencia ruim vinha. E, de repente, você não fazia mais sentido. Tentava falar, mas a voz embargada do choro na garganta abafava suas ideias. Eu queria te abraçar e te tirar dali pra tomar um bom banho quente, mas eu, que não tenho corpo, às vezes nem voz tenho também porque você me perde nos seus momentos de muita angústia e esquece que sou sua amiga e funciono muito bem na sua rotina normal. Tenho certeza, minha querida, que você quis sumir e voltar tudo atrás porque estava arrependida de todos os movimentos em prol de uma coisa que só pedia: calma. Respira.

- Sim. Não seja tão dura...mas sim.

- É, moça. Às vezes falta alguém pra te dizer "calma, respira" ou "não toque aí agora". Porque eu, consciência, sou abafada, muitas vezes, pelas coisas que você quer muito. Você luta com uma gana pelas coisas que te importam que, às vezes, esquece do tempo que elas precisam sem você. Esquece que muita coisa não está no seu controle e que não tocar em nada é o melhor jeito de resolver. Você é ótima para agir, mas muito ruinzinha pra esperar.

- Sinto que se eu esperar, vou deixar muita coisa passar.

- Bobagem! Se dê a chance de ver as coisas chegando até você. E quando aquela semente de ansiedade tentar te dominar, você vai ser mais forte e entender que, em certos momentos, é melhor observar. Tem que parar de querer fazer tudo, porque o fato de não ter sua mão ali no meio, não significa que o resultado não virá. Por acaso o que te irritou hoje depende só de você? Não, não e não. Por isso, calma! Respira.

- Calma, respira. Calma, respira. - repeti como um mantra.

- Isso, meu bem. - disse a voz que agora me acalentava o coração, tentando assoprar a dor que estava lá- calma e respira pra vida toda. Pra aquela prova que você tem que fazer e já estudou. Pro jogo de futebol que você quer ver o gol e já tocou a bola. Calma e respira pras coisas que te querem como observadora. Pros amores, que são livres pra pensar o que quiserem. Pras coisas que requerem a sua PACIÊNCIA. Calma e respira, como se você, antes de chegar no conforto bom da casa, estivesse atravessando um caminho com chuva gelada, durante o qual você não tem nada a fazer a não ser observar a água molhando a barra da calça.

- Mas estou! - exclamei.

- Então?

Calma. Respira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário