segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Minha primeira grande luta

 Há 4 anos conheci a minha primeira (e única) doença: a depressão. No início, muito me questionei sobre a real causa disso. Diferente das doenças com as quais eu estava acostumada a lidar na prática médica, não havia um exame preciso que comprovasse a minha condição. Me restava aceitar resignada que era possível, sim, ter a minha personalidade modificada de repente por razões químicas além do palpável. A partir dali, iniciei, sem acreditar muito, tratamentos (farmacológicos e comportamentais) que me devolveram de volta pro mundo (mundo esse que aprendi a amar de novo). Contudo, faz poucos meses que, na tentativa de me despedir das receitas médicas aos pouquinhos, o fantasma de 4 anos atrás retornou à minha vida. Dessa vez, no entanto, mais velha e mais madura, o recebi sem grandes desesperos ou inquietudes - apenas com a tradicional tristeza e fadiga inerentes ao bicho. Percebi que me perguntar o porquê da coisa era equivalente a perguntar o porquê de um ser humano com hábitos saudáveis descobrir um câncer de repente ou mesmo o porquê do início de uma pneumonia em alguém com plenos pulmões: não há explicação. A busca por uma razão é frustra e nos afunda cada vez mais no mar gelado em que mergulhamos. Quanto mais fundo, mais escura e fria a água se torna e, por isso, não caí nessa armadilha desta vez. Agora, diferente de antes, sou capaz até de escrever sobre isso. Com choro fácil (que não me envergonha mais) e com nenhuma vontade de viver o dia de trabalho eu vos informo: estou aqui falando sobre a depressão. Tornando legível o ilegível. Dando uma forma tipográfica à doença invisível aos exames. Dando voz àquela que se alimenta de silêncio. E como este blog é regado a metáforas, inventei uma para representar a depressão: é como andar em um mar de lama até o peito mas, diferente do que seria natural, não se importar muito se, por acaso, se afundar. Não ter muita força pra sair, afinal, a lama é grossa e é necessário muita energia para chegar até a borda. "Tudo bem se eu ficar aqui. Tudo bem se o destino assim o quiser". Alguém consegue imaginar? 

Eu, tão dona de mim e dona das minhas grandes conquistas; tão bem-humorada e sociável. Eu, logo eu. Calma! Não há razão plausível. Não há nada além da genética e um compilado de nadas. Eu conheço essa luta. Conheço esse jogo e nele já aprendi a jogar. O passar do tempo tem dessas vantagens: não nos tira da frente do perigo, mas nos dá a honra de já conhecer o inimigo. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

As coisas todas de agora

Há uma quadra esportiva de frente para a minha varanda. Todos os dias, por volta das 19h, muitas crianças e adolescentes se reúnem para jogos de vôlei e ali passam horas Animados, gritam, cantam, riem e comemoram pontos no micromundo da Mena Barreto. Eu paro para observar como se movem. Olho os mais tímidos de fora e os mais extrovertidos com pinta de líderes. Como se divertem os meninos na quadra, em plena segunda-feira, sem pensar no que fizeram do ano que passou; sem pensar no horário de acordar amanhã. Apenas a bola importa e a maneira como vivem o agora me encanta.

Lembrei, numa memória cristalina, de quando eu vivia o agora com a intensidade que a inocência dá pra gente. Me transportei para a quadra de vôlei da escola e lembrei como era importante, para mim, ganhar o jogo das olimpíadas escolares, com o rosto pintado com as cores da turma. Lembrei do fatídico dia em que errei o último saque em quadra e liguei assustada para a minha mãe, no trabalho, pra dizer que perderam por causa de mim. Eu vivia tão focada e intensa no que fazia que, às vezes, provava também a dor maior das minhas quedas. Hoje, pensando friamente, o sofrimento real daquela pequena jogadora não acontecia pelo seu mergulho no presente, mas por um apego ao passado (que acabara de nascer). Eu chorava o ponto perdido.

Cresci e, intensa como no dia do saque no vôlei, ainda deposito a maior energia do mundo em tudo que faço. Coração vindo na boca ao escutar o apito surdo do juiz. As pernas tremendo e as mãos frias batendo na bola. Nem sei quanto durou um momento desses pra mim. Tudo intenso. Tudo com ânsia de vômito. Como se em vez da bola eu carregasse o mundo e, passá-la pro outro lado fosse salvar a humanidade da fome e do câncer. Assim era o momento do saque pra mim. Era segurar o mundo com as mãos e salvar a humanidade que vestia roupas de time de escola. 

Mas, uma vez que a bola encontra a rede, tudo o que experimentei vira passado. O coração disparando é passado. O tremor das mãos e a boca seca pela vitória são passado. Não existe mais ponto, bola e nem jogo. A vida piscou e me entregou só o que existe, ignorando minhas lágrimas verdes de tinta. Tive raiva da vida e fui ligar pra minha mãe aos 11 anos de idade. Raiva da progressão do tempo; raiva de ter tido o mundo nas mãos há segundos e o ter atirado contra uma rede velha. Tive raiva de as coisas terem virado passado sem que eu construísse o presente à minha maneira. Do outro lado da rede, comemoravam. As coisas são o que são e sempre há alguém feliz com aquilo que lamentamos.

Hoje, aos 31, ainda acho que meu apego ao que se foi é tamanho. Ainda acho que eu deveria aprender a lavar a tinta do rosto mais rápido; a respirar os ares do presente e a me vestir de Agora como quem troca de roupa nos bastidores de uma peça: nem sempre confiante, mas rápida e certeira. O presente, encenado ou não, é sempre urgente. 

Na quadra da Mena Barreto, os guris viviam o agora. Eu, sem perceber, também.